Enquanto mulher negra, africana e pessoa com albinismo lutei toda a minha vida pelo empoderamento
- Thando Hopa
Entrevista a Thando Hopa por Joana Moreira
É negra. É africana. É mulher. E tem albinismo. Thando Hopa (e não hope, num trocadilho feliz com a palavra esperança) podia ser descrita apenas com estas características, não fosse o sangue que lhe corre nas veias, de um ativismo ensurdecedor. Tão ensurdecedor que ser procuradora e modelo não foi suficiente, e é nas palavras que se expressa enquanto ser pensante que luta contra todos os preconceitos do mundo. Às vezes meia palavra basta, mas Thando Hopa tem tanto para dizer, que é bom ouvi-las todas.
O que é queria ser em miúda? Durante muito tempo queria ser um milhão de coisas, mas acabei por ficar muito focada em ser atriz, curiosamente. Queria muito representar, mas o meu pai tinha uma filosofia diferente, queria que eu fosse contabilista. Portanto Direito acabou por ser o nosso meio-termo.
Ia perguntar-lhe se o Direito tinha sido a sua forma de lutar contra as injustiças do mundo, mas sendo assim pode dizer-se que foi por acaso. [Risos] Não te consigo mentir. Quando fui para Direito não sabia no que me estava a meter, para ser honesta. Mas acho que o impacto do curso foi que começou a esculpir a minha psicologia e a minha filosofia política. Só depois é que decidi ser procuradora e aí sim, foi uma decisão vocacionada puramente pelo sentido de justiça.
Lembra-se quando foi a primeira vez que os seus pais falaram consigo sobre albinismo? Não me lembro de alguma vez o fazer formalmente com os meus pais. Ou com alguém na minha família. Tudo foi muito gradual. Quando fui para a escola a minha mãe nunca me disse “olha, tu és diferente das outras crianças”. Porque eu cresci numa sociedade pigmentada. Cresci com pessoas de raízes indianas e pessoas negras. Eu cresci a ser a única pessoa que tinha uma cor branca na pele. Mas os meus pais nunca tiveram essa conversa oficial comigo. O que a minha mãe sempre fez, e eu acho que era uma forma de ela me ensinar sobre albinismo sem falar sobre isso, foi ensinar-me coisas práticas, como as questões relacionadas com a minha visão, e o meu pai jogava à bola comigo para me ajudar com a minha perceção da profundidade de campo, ela ensinava-me sobre pele e garantia que eu tinha sempre protetor solar. Ou seja, eu percebia as implicações práticas da minha pele, mas não as implicações sociais e culturais. (...) Quando és criança não és diferente, és só uma criança. Quando muito podes ser uma rapariga, mas mesmo a questão do género não é muito preponderante quando tens quatro ou cinco anos. Era como o albinismo. Eu não tinha albinismo. Nem sequer era negra, porque não conhecia o conceito de raça quando era uma criança. A tua mente só começa a perceber à medida que vais crescendo e a sociedade começa a ensinar-te que és diferente. Acho que só percebi verdadeiramente sobre ter albinismo aí pelo secundário.
Quando foi a primeira vez que se sentiu bonita? É difícil dizer-te, porque de facto é um processo. Lembro-me de um dia ter chegado da escola, ter ido ter com o meu pai a chorar e dizer que não queria mais ser assim. Porque quando és adolescente e a tua feminilidade começa a surgir, a tua noção de atração, de Beleza, surge pela primeira vez. Começas a internalizar as imagens que vês nos media, a tua cultura, quem as pessoas consideram bonitas, e se isso não fores tu... Bem, fui ter com o meu pai a chorar, isto com uns 12 anos e ele, que honestamente criou-me da melhor forma que um homem consegue, disse-me que eu era a rapariga mais bonita que já tinha visto. E eu continuei a chorar. Hoje sei que foi um momento decisivo do processo de perceber que eu, enquanto mulher, sou o suficiente. E depois o tempo passou e eu comecei a pintar as sobrancelhas, as pestanas... [risos]
Um momento de experimentação? Sabes que mais? Adorava dizer-te que sim, que foi sobre experimentação, mas não foi. Foi um momento na minha vida em que eu senti que não queria ter mais albinismo. As sobrancelhas e pestanas claras, o cabelo loiro e encaracolado faziam-me sentir peculiar. Por isso comecei a mudar o meu aspeto para me assemelhar mais a todas as outras pessoas. E quando fiz isso, comecei a parecer menos que tinha albinismo.
E como se sentiu? Confiante. Superconfiante. E comecei a ter validação dos meus companheiros, como se tivesse finalmente encontrado a fórmula perfeita para ser bonita. E depois o tempo passou, tornei-me procuradora, e nesse momento achei que estava muito confiante com a minha imagem. Até que uma coisa aconteceu que mudou tudo. Foi uma sessão fotográfica para a Forbes em que me pediram para fazer um look natural. E eu fiquei aterrada. Eu estava aterrorizada por ter de mostrar as minhas sobrancelhas claras, as minhas pestanas. Estava com medo de parecer tão diferente outra vez, porque no tempo em que me senti diferente não me senti bonita. E então pensei: ‘Se eu tenho medo de me mostrar como sou, como é que algum dia eu posso encarar isto como representação? Como é que eu posso dizer que é válido ser assim, se eu não estou ok com ser assim?’ Foi aí que a minha viagem pela Beleza começou. Percebendo que eu sou suficiente. Eu sou suficiente. Eu sou suficiente. Ficou um mantra. E só aí transpus parte da minha confiança para coragem, porque inicialmente eu era muito confiante, mas honestamente era-o porque estava a ter validação. Precisei de chegar àquele ponto em que estava contente comigo mesma, quer tivesse validação ou não.
O que é Beleza para si, hoje? Sentires-te suficiente. Sentires que naquele dado momento és o suficiente. Em grego, a origem do significado da palavra beleza é “estar certa”, ou seja, o que tu és nesse momento é perfeito e suficiente. É abraçares quem tu és: a tua idade, o teu género, tudo, e pensar que tudo é bonito e suficiente.
Enquanto procuradora lidou com muitos casos de crimes sexuais. Enquanto modelo também deu voz a uma campanha no âmbito do mesmo tema. Porque é que esta causa é tão importante para si? Para mim enquanto pessoa, além de mulher, a questão do poder sobre o corpo de alguém é muito importante. É um direito fundamental e as pessoas perceberem isso é muito importante. Portanto qualquer coisa que seja uma transgressão disso não aguento. Seja assédio sexual, violação, exploração sexual, algo que as modelos estão mais propensas a ser expostas... Acho que, enquanto mulher negra, africana e pessoa com albinismo, lutei toda a minha vida pelo empoderamento. E tudo o que seja uma transgressão disso é na verdade o berço do meu ativismo, é a razão pela qual eu sou ativista. Porque as pessoas referem-se a ser ativista como uma profissão, mas não, é uma característica da personalidade. Vai seguir-te para onde quer que vás. Podes ser modelo, podes ser construtor, podes ser advogado, um grande CEO. Ativismo é uma característica e manifesta-se em qualquer profissão.
Sente que ter albinismo fomentou o seu papel enquanto ativista? Sem dúvida. Muitas vezes quando estou a falar refiro-me ao meu albinismo porque estar neste corpo ajudou-me a compreender muitas coisas. Ajudou-me a perceber a importância das ligações sociais e de nos ligarmos uns aos outros. Ajudou-me a aprender como é que nós enquanto sociedade lidamos com a diferença. Porque eu experienciei diferentes tipos de preconceito. Enquanto mulher. Enquanto mulher negra. Enquanto pessoa com albinismo. Enquanto mulher africana. Especialmente no panorama europeu, percebo a forma como as perguntas são colocadas. Há uma certa perceção sobre África que não é necessariamente correta, ou que está mal representada [suspiro]. Mas acho que estar neste corpo me ensinou muito.
Como é a sua postura em relação ao preconceito? O preconceito é contextual e multifacetado. Dependendo do teu contexto podes ter preconceito, não ter preconceito ou ter muito preconceito. Mas não é fácil, porque por exemplo ainda há muita iliteracia no que respeita ao albinismo, e se então houver uma falta de explicação científica... a explicação tende a mover-se ainda mais para o campo supernatural [risos]. Como “tu és assim porque és especial ou tens poderes especiais”.
Como se sente em relação à palavra “especial”? Não gosto. Porque não acho que seja positiva. Ser separada da tua humanidade é um problema, quer as pessoas te chamem animal ou um tipo de anjo, o que seja, qualquer coisa que te tire humanidade.
Ainda sobre preconceitos. Tem sido muito aberta sobre o problema nos media e sobre a subjugação às expressões “modelo albina faz isto, modelo albina faz aquilo”. Sente-se ainda vista dessa forma? Acho que está a mudar no que toca a mim, Thando Hopa. Não sei sobre a próxima jovem com albinismo que entre no meio. Espero mesmo que todas as lutas e desafios por que passei... ela não tenha de passar pelo mesmo. Porque eu fui tão vocal quanto possível. Mas se eu ainda experiencio preconceito? Claro que sim [risos]. Demorou muito tempo até que certos espaços me aceitassem da forma que sou e que não estivessem desconfortáveis com o look. “Oh, vais desaparecer em frente à câmara assim.”
Como é que se ouve – e responde – a uma coisa dessas? Encontrando uma realidade partilhada. Lembro-me de uma vez estar com uma mulher que era plus-size model, e nem sei se concordo com este termo, mas enfim, e ela disse-me: “Não acabaste a maquilhagem, vais desaparecer em frente à câmara, vamos só escurecer as sobrancelhas.” E eu disse-lhe: “Sabes quando põem uma rapariga grande num espartilho para a fazer parecer mais pequena?” Dizem que é “pela diversidade”, mas é mais “vamos deixar-te desconfortável para teres o look com o qual nós estamos confortáveis na nossa cultura”. E ela disse: “Sabes que mais? Eu acabei de fazer isso contigo.” É esta realidade partilhada, este terreno comum, o mecanismo que eu tento usar. Empatia. Tento usar empatia.
Nunca como hoje falámos tanto sobre representação. Está esperançosa no futuro ou sente que ainda vivemos sob muitos rótulos e estereótipos? Sobre albinismo, para ser honesta, não vejo qualquer mudança no cinema ou na televisão. Na Moda, pelo contrário, em termos de representação tem sido cada vez mais diversa.
Como é que vê a representação nos media? As minhas experiências fizeram-me chegar até aqui e concluir que, apesar de existir representação, ela pode resultar em má representação ou representação condicional, ou seja, “representamos-te se tu fizeres isto”, sabes? E às vezes a representação é através de um retrato indesejado. Eu passo muito por isso porque quando a minha carreira de modelo cresceu, o interesse pela carreira enquanto atriz também. E as pessoas começaram a dar-me excertos de personagens. Mas todas elas têm padrões muito semelhantes. Ou é esta personagem maléfica [risos], ou tem que ver com assassinatos muti, rituais associados ao albinismo em África. E todas, todas as personagens que recebi, tinham esta desconexão social (...). Nunca era só uma pessoa numa comunidade, a fazer coisas humanas normais, a apaixonar-se, a ir à escola, o que fosse, uma história humana. Todas estas histórias eram separadas da humanidade e houve um tempo em que eu era muito afetada por isso. Estava presa a um estereótipo. E depois tive de escolher entre má representação, falta de representação ou representação condicional num retrato não desejado. Nunca tive a opção de uma representação inclusiva, percebes? Uma personagem humana e relacionável.
Tem algum receio de que esta ideia de inclusão e diversidade seja entendida como uma tendência? Escrevi sobre isto há um tempo, não acho que os corpos humanos devam nunca ser apelidados como tendências. Tenho um problema grave com pessoas que dizem que albinismo é uma tendência ou que vitiligo é uma tendência. Ou pessoas que dizem “é tão cool ser negro agora” [risos]. Não sou capaz de lidar com o que ouço. Os corpos humanos não são descartáveis. Tem sido um dos meus problemas na forma como as pessoas olham para certos corpos na Moda. No que toca à inclusão, não acho que seja uma tendência. O diálogo sim, pode ser uma tendência.
Como é que nós, mundo, podemos fazer melhor? Com consultoria. Priorizando consultoria se queres fazer algo sobre alguma coisa em que não tens experiência. Eu própria tenho de consultar pessoas se vou a Portugal e se tenho de fazer alguma coisa sobre Portugal, certo? Não posso chegar, ter a minha perceção do que é Portugal, como as pessoas portuguesas falam, como é a cultura, simplesmente porque li sobre isso nalgum lado. Preciso de fazer consultoria. É um passo essencial para progredir verdadeiramente com diversidade inclusiva. Tens de estar aberto a pedir ajuda.
Foi a primeira mulher sul-africana negra a figurar no icónico Pirelli Calendar, em 2018. Eu nunca senti que fosse uma questão de raça, sabes? Mesmo sendo um elenco exclusivamente negro. Acho que foi uma mensagem para mim sobre representação. Inicialmente a narrativa implicava muita obrigação: “Tens de fazer isto porque é a coisa certa a fazer.” Sinto que hoje as pessoas estão a começar a perceber que a diversidade é todo um mundo de oportunidade. Que temos acesso a uma cultura e imaginação diferentes, que estamos perante uma diversidade cognitiva e que vemos como é possível contar histórias de uma maneira mais abrangente e inclusiva. E acho que hoje as pessoas pensam: “Espera, como é que há toda esta riqueza a que nunca acedemos, porque estávamos a monopolizar as coisas com algo tão artificial como a raça ou o género?” Acho que as pessoas estão a começar a ver o benefício genuíno da diversidade.
Li que foi a Adwoa Aboah a fada‐madrinha de tudo. Eu não fazia ideia de que tinha sido ela a enviar a minha fotografia! Quando a conheci foi de forma muito casual, apresentámo-nos apenas. E eu nunca tinha conseguido perceber como é eu tinha ido parar ao Pirelli. Tens de perceber que isto era honestamente inimaginável, no sentido mais lato da palavra. Sou uma mulher da África do Sul, por isso só geograficamente já não faz sentido. E ainda que tenhamos feito progressos na cultura pop no que toca à representação, uma coisa desta dimensão... Mas bem, descobri que quatro anos antes a Aboah tinha mostrado a minha fotografia ao Tim Walker [fotógrafo do Calendário Pirelli em 2018]. E disseram-me: “Vamos fotografar para Vogue.” Mas eu era procuradora na altura, a trabalhar em casos de crimes sexuais e, vou ser muito sincera contigo, eu não ia abandonar para um editorial da Vogue de três dias e deixar uma vítima de violação sem alguém para a representar. Nas minhas prioridades, isto não era sequer discutível. Foi só aquando do lançamento que conversei com o Tim [Walker], que, já agora, é uma das pessoas mais fascinantes que eu já conheci na vida, e perguntei-lhe: “Tim, como é que me foste encontrar?” E foi aí que ele me disse que tinha sido a Adwoa a enviar-lhe a minha fotografia. Muitas vezes as pessoas procuram reconhecimento, e ela nunca o quis, o que foi tão surpreendente. Ela fez algo por mim sem esperar qualquer coisa de retorno. Espero ser esse tipo de pessoa. Achei que foi uma prova de caráter.
A palavra modelo pode ter algumas interpretações, e ser vista como “modelo” por alguém é uma delas. Sente algum tipo de responsabilidade? Há um provérbio nativo americano, que li uma vez, que diz algo como: “Nós não herdamos a terra dos nossos pais, mas pedimo-la emprestada dos nossos filhos.” E eu achei isso muito interessante, porque quando herdas alguma coisa toma-la como tua e fazes o que queres com isso, mas se for emprestado isso significa que não é teu e que precisa de ser partilhado. E é assim que me sinto em qualquer plataforma que estou, que carrego comigo muitas pessoas. Definitivamente sinto o peso e a responsabilidade, de outro modo não me importaria, escolheria qualquer trabalho que me desse dinheiro, e não me preocuparia com o legado que vai muito além de mim.
Numa entrevista contou como, quando era miúda, a sua mãe gritava por si quando via uma pessoa com albinismo na televisão. Sente que pode ser essa pessoa para alguém? [Risos] Sim, acho que sim, mas espero que cheguemos a um ponto em que isso já não aconteça. Isso significava muito na altura, porque na cultura popular não havia mesmo representação. Mas hoje não é tanto assim, e sinto-me muito grata por ter contribuído para esse tipo de cultura. Muito grata mesmo.
Foi procuradora, modelo, enveredou pelo ativismo e, de repente, começou a escrever. De onde surgiram as palavras? Nunca me considerei uma autora. Foi só no Calendário da Pirelli que percebi que poderia vir a ser uma. Eu tinha o hábito de escrever, fazer spoken word e poesia, mas nunca levei isso a sério. Mas quando me pediram para escrever um ensaio para o calendário... passei-me. Porque eu sabia o que dizer, mas não como deixar as coisas por escrito de forma a que fizessem sentido. Mas depois disso comecei realmente a dedicar-me à escrita. E comecei a compensar por tudo aquilo que não conseguia dizer. Escrever compensa tudo o que não consegues dizer no momento.
Alguma vez considerou escrever um livro? Definitivamente consideraria. Acho que faz parte do meu chamamento. Mas como seria ainda não sei. Mas sinto que de certa forma já estou a escrever a minha história. Não sei se um dia a consolidarei num livro, mas sinto que já o comecei a escrever.
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